quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Isidora - As Cidades e a Memória 2

Seeing Calvino

“... cidade onde os prédios têm escadas de caracol incrustadas de búzios marinhos, onde se fabricam artísticos óculos e violinos, onde quando o forasteiro está indeciso entre duas mulheres encontra sempre uma terceira, onde as lutas de galos degeneram em brigas sangrentas entre os apostantes. [...] A vida sonhada continha-o jovem; a Isidora chega em idade tardia. [...] Os desejos são já recordações.”

Cavalguei por terrenos bravios durante demasiado tempo. Os dias que eu tinha previsto, transformaram-se lentamente em semanas, que acabaram por se tornar meses, mesmo anos. Anos esses que foram passados a olhar em redor, na esperança de encontrar qualquer traço de civilização, e vendo apenas território selvagem, sob a forma de montanhas agrestes, ou planaltos pouco convidativos.

Admito, com vergonha, é certo, que me perdi. Nunca tal me tinha acontecido, em todos os meus anos como viajante, mas quando aconteceu, foi em grande.

Durante esse tempo em que estive perdido, todos os dias olhei em todas as direcções, observando a vegetação rasteira a desaparecer e a dar lugar ao solo arenoso, que se ergueu, lentamente por vezes, outras vezes de forma abrupta, e deu lugar a montanhas agrestes. Em vão procurei o mais pequeno sinal de civilização...

Não encontrei nada durante meses. Absolutamente nada. Nem uma modesta caravana de nómadas, nem uma portentosa cidade, como Diomira, a cidade de onde parti, e cujas memórias se começavam a esbater, na minha mente. Foi então, quando já mal me lembrava do último pedaço de civilização que tinha visitado, que comecei a ansiar, mas não por comida, ou por água. Nunca tive que passar fome, nem sede. Foi por uma cidade. Ansiei por civilização, desejei encontrar uma cidade, para descansar, envolto no leve burburinho tão típico das cidades.

Cheguei, nessa altura, a Isidora, como se ela estivesse à espera que eu a desejasse, que chamasse por ela. Onde antes tinha terrenos bravios, tinha agora Isidora, cidade das Artes, tão maravilhosamente construída, e tão tempestivamente habitada.

Os seus habitantes, artistas natos, sensíveis à beleza e à magnificência como poucos o são, entregam-se facilmente à fúria e à frustração, temperamento usual entre artistas, que se têm a infeliz sorte de passar alguns dias sem conseguirem criar alguma coisa, começam a ficar irritadiços e enervados.

Pelo menos eu pensava que tinha chegado a Isidora. Tinha tido uma espécie de sensação, que mo dizia, mas não tive mesmo a certeza até entrar na cidade, e ver como todos os prédios tinham escadas em caracol, incrustadas de búzios marinhos, colocados em belos padrões, apenas possíveis de serem imaginados e desenhados pelos habitantes-artistas de Isidora, os isidorenses.

E vi, com prazer, as placas que anunciavam as duas especialidades dos isidorenses. Os seus óculos e violinos são falados em todo o mundo, cobiçados por todos os astrónomos e músicos, e a sua construção é imitada por todos os artesãos, numa vã esperança de se conseguirem comparar aos hábeis isidorenses.

Isidorenses os artistas, isidorenses os artesãos... Qual dessas facetas seria a mais natural aos habitantes de Isidora? Ou seriam ambas intrínsecas e inseparáveis uma da outra? Vou ser honesto, não sabia, e não fiquei a saber, mesmo depois de sair da cidade. Pareciam, por vezes, funcionar em conjunto, quando os habitantes usavam os seus talentos artísticos numa peça artesanal, ou quando faziam uso das suas habilidades de artesãos para finalizarem uma escultura.

Claro que perguntar aos próprios habitantes estava completamente fora de questão... Isso porque notei que os habitantes de Isidora pareciam dividir-se em dois grupos: homens e mulheres. Fazia-se esta divisão pelo simples facto de não existirem mulheres artistas em Isidora. Sempre foram todos homens. O porquê disso mesmo foi outra das questões que ficaram por responder sobre Isidora.

Os homens, durante o dia, passeavam entre os vários edifícios, visitando as oficinas de uns e de outros, trocando ideias, fazendo compras aos mercadores vindos de fora, desde cavaletes e tintas a madeiras exclusivas deste ou daquele lugar. Durante a noite, tive a infelicidade de assistir ao degradante passatempo destes homens, artistas natos, tão sensíveis à beleza, e que pareciam, no entanto, insensíveis ao sofrimento e à crueldade.

Por todo o lado, lutas de galos. As arenas proliferavam, durante a noite, como que nascidas do solo, em todas as ruas, e os homens juntavam-se à volta desses sangrentos palcos circulares, eufóricos e extasiados, alguns com galos debaixo dos braços, outros a observar as manchas castanhas de sangue seco que cobriam algumas das arenas quase na totalidade, enquanto esperavam pelo início das lutas.

A noite acabava sempre da mesma maneira, e os isidorenses sabiam-no, embora isso não os fizesse hesitar. Todas as noites, sem excepção, a luta passava da arena para as suas imediações, e não era por fuga dos galos participantes, mas sim porque os apostantes, desconfiados uns dos outros, se atacavam mutuamente, reclamando que não tinha sido tudo pago, ou que alguém tinha metido a mão no bolso de outro alguém.

Já fazia parte do espectáculo. Os homens reuniam-se ali, no início da noite, para assistirem aos galos a combaterem até à morte, mas era com a mais pura das ansiedades que esperavam pelo fim desses mesmos combates, para que pudessem descarregar tudo o que precisavam no vizinho do lado.

As brigas eram sangrentas, e capazes de durar o resto da noite, até os isidorenses se separarem, e irem cada um para sua casa, calmamente, como se nada tivesse acontecido. Regressavam, a maior parte deles, para casas vazias, ou melhor, cheias, mas de Arte. Eram poucos os homens que viviam com uma mulher, e pelo menos disso consegui perceber rapidamente o porquê.

Os isidorenses, artistas desde que nascem até que morrem, sem excepção, viviam as suas vidas de tal maneira imersos na Arte, distraídos com as suas esculturas, as suas pinturas, os seus óculos e os seus violinos, que praticamente desprezavam as mulheres, deixando-as para último lugar das suas listas de prioridades. As mulheres, claro, nunca gostaram disso, e aprenderam, com o tempo, a distanciarem-se dos homens, vivendo à parte, e apenas se encontrando com eles para se garantirem que Isidora continuava a ser habitada.

Os homens nunca deram por ela, como é óbvio. Continuaram a entregar-se de corpo e alma à sua Arte, e aos seus ofícios, e pareceram satisfeitos com o contacto mínimo com as mulheres, que, curiosamente, sempre foram em maior número que os homens. Parece uma gigante piada, com Isidora com pano de fundo: uma cidade onde os homens desprezam as mulheres, durante toda a vida, é a mesma cidade onde elas existem em tal número que se um viajante se encontrar indeciso entre duas mulheres, logo encontra uma terceira!

Não pude deixar de pensar como eram estranhos, estes isidorenses. Mas ao mesmo tempo, congratulei-os, pelo desprezo e falta de afecto dos isidorenses às mulheres da cidade, que ajudou, juntamente com tudo o resto, é claro, a criar uma cidade de sonho para os viajantes que, como eu, ansiavam por uma cidade.

Afinal, Isidora escorria cidade e civilização dos poros de todos os habitantes. Poderia haver algo mais citadino que homens imersos no seu trabalho e mulheres desprezadas? Que um caos controlado durante o dia, e uma calma descontrolada durante a noite?

Isidora era, no fundo, o meu sonho, enquanto viajante perdido, e de certo o sonho de muitos outros viajantes. Apenas com uma pequena e subtil diferença. A cidade dos meus sonhos, enquanto estava perdido, que agora sei chamar-se Isidora, era uma cidade quase perfeita, que me continha a mim, enquanto jovem. Afinal, eu era um jovem, quando comecei a sonhar com ela. Mas quando lá cheguei, vi que a verdadeira Isidora me tinha recebido já a caminhar para uma idade tardia.

Vi na praça um comprido paredão, onde os velhos se encostavam, a observar a juventude que lhes tinha fugido, e sido passada às gerações seguintes. Foi com horror que reparei nas roupas que a maior parte deles tinham vestidas. Eram em tudo parecidas com as minhas, roupas de viajante. Isidora parecia ser o pouso final dos viajantes, que se perdiam no caminho até ela, sonhavam com ela até ao ponto de chamarem por ela, nos seus desejos. Mas quando finalmente lá chegavam, não eram os jovens viajantes que tinham iniciado a viagem, mas uns velhos viajantes, prontos para ficarem por ali, a viverem através dos jovens isidorenses.

Deles olhei para mim, e vi que era esse o caminho que me preparava para seguir. Dei, na minha mente, um passo atrás, para enveredar por outro caminho e, já fisicamente, sair da cidade, pesaroso.

Não olhei para trás, por cima do ombro, por saber exactamente o que lá ficava. A minha cidade de sonho, a minha civilização ideal... Ou melhor, a cidade de sonho e civilização ideal de um jovem eu, não de mim! Sabia que tinha que partir, que os meus desejos de juventude não passavam já de meras recordações, coisas já passadas sem serem realmente vividas.

Mas sabia, ainda assim, que tinha de partir...

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Peças como paredes

Encaixei a última peça e virei-me satisfeito. Completar um puzzle é como chegar ao fim de um labirinto: parece nunca mais acabar e de repente ali está a saída, a última peça. Quase sem se dar por ela.

Saí da sala, apressado. Nunca ficar demasiado tempo com um puzzle, foi o que meu pai sempre me disse, especialmente com um que esteja acabado, foi o que a minha mãe me disse uma vez.

Só quando estava na faculdade é que me apercebi que a relação que eles tinham com puzzles não era normal. Eu achava que toda a gente os fazia noite dentro, de forma quase ritual, e englobava toda a família naquela actividade silenciosa e meticulosa.

Por algum motivo consegui não trazer o assunto ao de cima durante os anos de escola, mas na faculdade, a viver longe de casa, foi impossível não o fazer. Quis convidar os meus colegas que também estavam deslocados para fazermos puzzles noite dentro, pelo menos duas vezes por semana, "para não estranharmos demasiado".

Acharam estranho. Riram-se. Nunca mais me falaram. Só então é que eu achei estranho. Tentei fazer perguntas aqui e ali, o mais discretamente possível, e integrei-me num grupo de amigos, sem dificuldades de maior. Fui fazendo os meus puzzles, sozinho. E um dia consegui: estava em casa duma amiga, com mais três pessoas, e ela desafiou-nos a fazer um puzzle antigo e supostamente impossível que ela tinha por lá.

Nada de extraordinário: mil peças, uma paisagem outonal, com grande parte da imagem coberta de folhas todas nos mesmos tons. Não era fácil, mas não era difícil. Na pior das hipóteses, trabalhoso. Mas fiquei entusiasmado. Escolhi uma peça e mantive-a na mão durante todo o tempo, para controlar a altura em que acabávamos o puzzle. Tentei não me exibir demasiado, mas todos notaram a minha habilidade.

E foi então, com quase todas as peças nos lugares, que percebi que nem todos os puzzles ganhavam vida. A minha família montava-os de forma ritual porque eram de facto momentos de ritual. A última peça libertava o puzzle, que se escondia num dos recipientes que o meu pai tinha sempre por perto.

Pus a última peça. Nada aconteceu. Rimo-nos, bebemos e comemos mais qualquer coisa, dormimos por ali e no dia seguinte a vida retomou como era costume. Demorei várias semanas até ter coragem de fazer a pergunta aos mais pais, "Porque é que nunca me contaram?", pelo telefone.

Silêncio do outro lado.

"Tens feito alguns?", perguntou a minha mãe, com a voz mais séria que alguma vez tinha ouvido nela.

"Claro que sim."

"E tens feito tudo?"

"Sim, todos os rituais.", respondi, com bastante ênfase na última palavra.

"Então abre um dos frasquinhos."

E desligou a chamada.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

sábado, 15 de agosto de 2015

De certeza?

Ele salta, ele corre, ele consegue evitar o obstáculo e ele marca golo! É GOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO-

"A sério?"

-OOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOLOOOOOOOO!!!

"Tu alguma vez me vais ajudar?"

Já te ajudei. Ajudei-te a descobrir essa malfadada cruz que agora seguras bem alto e contemplas com os teus olhos escuros a indicar uma dose massiva de idiotice. Suspiras, por motivos que escapam a qualquer pessoa minimamente racional, e encolhes os ombros, como quem se resigna. O que era de esperar, já que és um perdedor.

"Vamos para casa."

Caminhas apressadamente para casa, no teu passo feminino e para lá de ridículo. Consegues ultrapassar a maior parte das pessoas na rua, numa espécie de corrida ridícula em que és o único participante que tem consciência que participa. Chegas a casa, entras, atiras a cruz de prata para cima da mesa, sem qualquer cuidad-

"Não sejas assim."

... atiras a cruz de prata para cima da mesa, com um super cuidado super cuidadoso, como se fosses um elefante a tentar pintar um ovo de codorniz.

"Tens sempre que exagerar? Podias ser mais simpática."

Tu é que pediste. E és tu que agora te sentas no sofá, completamente estafado.

"Por acaso. Mas não me faças dormir."

De certeza?

"Sim."

Diz ele, antes de fechar os olhos e começar a ressonar bem alto. Idiota.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

A Cruz de Prata

Os acontecimentos passados atormentam-me o juízo como se de um salgueiro enraivecido se tratasse. O vento que abana esse salgueiro é silencioso, mas mortal, como mortais somos todos nós. Matamos e morremos e morremos e matamos, como mortais e mortais que somos. A grande dúvida que pesa sobre os meus ombros é a mesma que pesa sobre os ombros da Humanidade como um todo, a dúvida sobre...

"Pára de ser tão dramática."

Ahem, a dúvida sobre o verdadeiro motivo da nossa existência enquanto seres à face desta Terra que nos foi emprestada pelos deuses sem nome e pelos deuses com demasiados nomes. Qual é a razão de todo o sofrimento porque passamos e que não tem igual em nenhuma dimensão alternativa que...

"Já chega, vá."

Pronto, pronto, qual é o teu problema hoje?

"O principal é que estou a ficar farto de te ouvir!"

E?

"Bem... Preciso de ti."

Ai sim? Primeiro é para me calar, e agora já precisas de mim... É sempre a mesma coisa, deves pensar que te safas com essa brincadeira durante muito tempo.

"Nunca disse para te calares."

Não quero saber.

"Vais-me obrigar a implorar?"

Talvez.

"Preciso mesmo de ti, vá..."

Diz...

"Tens que me narrar como deve ser, hoje."

O que é que queres dizer com isso?

"Não quero das tuas brincadeiras do costume, hoje preciso mesmo que te limites a narrar normalmente."

Mas...

"Por favor!"

Pronto. Está bem. Se tem de ser.

"Óptimo. Hoje vamos descobrir a Cruz de Prata."

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Diomira - As Cidades e a Memória 1

Seeing Calvino

“…cidade com sessenta cúpulas de prata, estátuas de bronze de todos os deuses, ruas pavimentadas a estanho, um teatro de cristal e um galo de ouro que canta no alto de uma torre todas as manhãs. […] quem lá chegar numa noite de Setembro […] lhe apetece invejar os que agora pensam que já viveram uma noite igual a esta e que então foram felizes.”

Ainda a alguma distância da cidade, e graças ao brilho alaranjado do sol poente, já sabia onde ela ficava. Conseguia ver as cúpulas de prata a brilharem, à distância, e sabia a que número chegaria se as contasse: sessenta. Eram exactamente sessenta, as cúpulas que se erguiam, de Diomira, e que identificavam a cidade, muito antes de qualquer viajante lá chegar.

Diomira, a cidade que parece uma manta de retalhos. Diomira, a cidade que reúne deuses de várias regiões e religiões. Sem olhar a diferenças nem desavenças, acolheu-os a todos, em tempos, permitiu que várias culturas se instalassem, e não se opôs a que cada uma trouxesse os seus próprios deuses.

Vindas de todos os lados, essas culturas chegaram a Diomira quando ela era ainda um mero pedaço de terra, sem edifícios, sem ruas, sem cúpulas de prata a brilhar ao sol, apenas um grande descampado que atraiu aquele heterogéneo grupo de pessoas.

E foi com um silêncio feliz, feliz de chegarem ao destino que não sabiam que o era, que aceitaram a presença uns dos outros, e concordaram que ali iriam erigir Diomira, que há muito esperava por eles.

Oh!, o que eu não dava por ter visto! Por ter visto os dias, semanas, meses e anos que se seguiram, em que tantas culturas e raças se juntaram e trabalharam lado a lado. Deve ter sido um regalo para a vista, e para a alma, ver os povos habituados ao calor sufocante dos desertos arenosos do Sul a ensinarem como fazer roupa mais leve, e mais apropriada, aos povos dos desertos gelados do Norte. Ver sessenta povos, sessenta culturas, sessenta fés, reunidas num só sítio, e através dessas fés, ao mesmo tempo individualizadas e fundidas numa só, a trabalhar por um objectivo comum… Que visão! Que visão!

Mediante combinações apenas pensadas, que não precisaram de ser ditas, por parecerem demasiado óbvias aos futuros diomirenses, construíram sessenta cúpulas de prata, exactamente uma em representação de cada uma das suas culturas, e adornaram as ruas, pavimentadas de estanho, com estátuas de bronze de todos os seus deuses, e até mesmo, num acto de verdadeira boa-fé, de deuses que apenas conheciam de nome, de outros povos que ali não estavam representados.

Fizeram isto sempre alegres, e sempre confiantes uns nos outros e em si mesmos, comportamento em parte condicionado por Diomira em si, e que se iria perpetuar pelas gerações futuras. Esses primeiros habitantes de Diomira tiveram a capacidade, herdada pelos seus descendentes, de conviverem com dezenas de outras fés, sem perderem a sua. Conseguiram pensar na cidade como um todo, sem se esquecerem que são únicos. Tiveram a audácia de aceitarem e respeitarem sessenta culturas diferentes, sem se desviarem da sua própria.

Foi essa… capacidade, essa habilidade, seja o que for, que permitiu a Diomira crescer e erguer as suas sessenta cúpulas de prata, que agora brilham na minha direcção, e em todas as direcções, lançando a sua luz por todo o lado, sem no entanto sair do mesmo sítio.

Essa cidade, essa Diomira refulgente e multi-cultural, foi a primeira cidade que encontrei, desde que iniciei a minha viagem, saindo da minha própria cidade. Que sorte a minha, encontrar uma cidade que brilhe tão intensamente, ao longe, qual farol a indicar-me o caminho! Apressei as minhas pernas cansadas, desejoso de chegar a Diomira antes de o sol se pôr, para não ter que confiar apenas na minha capacidade de orientação, e me puder guiar pelo brilho da cidade.

Mas, azar o meu, os dias já tinham começado a encurtar, e o sol pôs-se, muito antes de eu chegar perto de Diomira. Resignado, lancei o olhar para cima, para o céu, para identificar as estrelas por cima de mim e continuar o meu caminho, seguro e sem medo de me perder. Procurei, pensei, lembrei, calculei, tudo isto de forma automática, virtude da prática, e encontrei a rota que me levaria à cidade.

Desviei o olhar do firmamento, lentamente, para a direcção de Diomira, e constatei, com surpresa, que não precisava de ter feito tantos cálculos.

A cidade ainda refulgia.

Refulgia, mas com um brilho diferente. Já não era o tom alaranjado, de um sol poente, era um prateado majestoso, a raiar o branco, que contrastava com o negro céu atrás e acima da cidade. E constatei também que devia ter andado mais depressa do que pensava, ou então que tinha andado enquanto calculava, sem dar por ela, pois Diomira estava a uns meros duzentos passos de mim!

Corri, ansioso, e entrei pelos portões da cidade, mesmo a tempo de ver as primeiras lâmpadas multicores a acenderem-se, por cima das lojas de peixe frito. Desencadeou-se assim um processo parecido às peças de dominó a cair: acendeu-se lâmpada atrás de lâmpada, em rua atrás de rua, criando um autêntico arco-íris das mais variadas cores, cada uma única, mas formando um belo conjunto uniforme, no todo.

Era essa a visão dos diomerenses, desde que fundaram a cidade. Não a de que uma população é formada por vários indivíduos, mas a de que vários indivíduos formam uma população. Uma diferença subtil, apenas formal, na realidade, mas que mudava tudo.

Caminhei lentamente pelas ruas de Diomira, e observei os seus habitantes a saírem das casas, a cumprimentarem-se calorosamente, a conviverem calmamente. Reparei que as diferenças entre as várias culturas se tinham esbatido. Os traços particulares de cada raça tinham sido como que erodidos pela passagem do tempo, não se conseguindo dizer onde ficavam as raízes de algum dos habitantes.

Estes não eram os primeiros diomirenses, uma amálgama heterogénea de culturas e raças, ainda que unidos. Estes eram os verdadeiros diomirenses, descendentes desses primeiros, e que tinham criado a sua própria raça, a raça de Diomira, mas que tinham mantido, apesar disso, os costumes da sua raça original.

Só soube isto porque à medida que eu caminhava pelas ruas de Diomira, pude ver como cada habitante procurava uma estátua de bronze em particular, e fazia as suas orações conforme a cultura a que devia ter pertencido, e que, afinal de contas, ainda pertencia. Vi diomirenses ajoelhados, lado a lado, de cabeça erguida e braços abertos para uma estátua, bem como diomirenses calmamente sentados, a formarem um semicírculo em redor de outra.

E vi então a mais bela construção de Diomira, um teatro de cristal, com paredes transparentes, que me permitiram olhar lá para dentro, e a quem estava lá dentro olhar cá para fora. Havia uma peça a ser representada no palco, mas havia pessoas no público viradas em todas as direcções. Tanto observavam os actores, como as pessoas que passavam, através das límpidas paredes.

Admirei aquela magnífica construção durante muito tempo, durante muito tempo mesmo, e a única coisa que me tirou daquele torpor foi um silêncio absoluto que se fez sentir na cidade. Olhei em volta, e vislumbrei vários rostos expectantes e sorridentes. Vi as estátuas de bronze, tal como já tinha visto em muitos outros sítios, e vi as cúpulas de prata, usuais nos mais variados pontos do mundo. Até mesmo aquela magnífica construção, aquele teatro de cristal tinha parentes, mais ou menos afastados, espalhados por todo o lado.

Reparei nesse momento que todas as cabeças se encontravam viradas para o mesmo lado. Virei-me eu também, e vi uma mulher a sair por uma portada para um terraço, a olhar para toda a Diomira, e a soltar um grito: uh!

Grito de guerra, ou grito de paz? Grito de festa, de certeza, pois todos os diomirenses começaram a dançar e a cabriolar por todo o lado, misturando danças de todo o lado, e inclusive arrastando-me com eles, e fazendo-me dançar, sem saber os passos, coisa que não importava, pois não haviam passos definidos. Só precisei de sentir a felicidade deles, e de dançar e cantar com eles, deixando-me ir, deixando-me fluir, deixando misturar a minha própria cultura com as dezenas de culturas dos diomirenses, que não passavam, afinal de uma única.

Dancei e cantei, convivi alegremente, comi com os diomirenses, e diverti-me como há muito não me divertia. Foi só quando os primeiros raios de sol apareceram no horizonte, que os diomirenses se acalmaram, e se mostraram cansados, tal como eu estava. Daí até pararem completamente, ainda o sol subiu alguns metros no horizonte, mas quando isso finalmente aconteceu, um som percorreu toda a cidade. O canto de um galo.

Procurei-o com o olhar, e fui dar com ele no cimo de uma torre, uma das mais altas de Diomira. Tinha penas amarelas, aliás, douradas como se fossem feitas do mais puro ouro, e cantava a bom cantar, enchendo a cidade com o seu estrépito, ecoando pelas ruas, embatendo nas cúpulas, contornando as estátuas, e entrado pelo teatro de cristal adentro.

Os diomirenses recolheram às casas, e só nessa altura me apercebi de algo. Que tinha acabado de ter a noite mais feliz de toda a minha vida, e que nunca nada se lhe assemelharia. Oh!, como eu invejei, nesse momento, todos aqueles que apenas pensavam terem tido uma noite assim, e que eram verdadeiramente felizes, pois eu tinha acabado de a ter, e enfrentava agora a dura percepção de saber que já tinha encontrado a verdadeira felicidade, mas que a ia perder, para todo o sempre.

Oh!, como eu os invejei!

sábado, 8 de agosto de 2015

Escadas de memória


Miguel ainda não sabe o que são umas Escadas. Tem vivido a sua vida da forma mais tranquila possível. Normal e aborrecido, até. Gosta de desporto, mas não demasiado, gosta de mulheres, mas não demasiado, gosta de comer, mas não demasiado, enfim, uma autêntica personificação do tédio.

Aquilo que o espera, no entanto, é grande. Muito, mas muito grande. Ele que toda a sua vida subiu e desceu escadas como se nada fosse, vai ter que enfrentar umas Escadas. A primeira pessoa a fazê-lo em vários séculos.

Só que ainda não sabe. Sente que se passa qualquer coisa, já há algumas semanas, mas não compreende o quê. Pensa sempre em algum tipo de doença (Miguel é, obviamente, hipocondríaco, mas não demasiado), e nunca em mais nada. Nunca sequer pensou em nada místico: desde que se lembra que nem é religioso, nem agnóstico nem ateu nem nada; está-se nas tintas.

Mas hoje foi diferente. Hoje sentiu o que tem sentido, e ignorou como de costume. Foi-se deitar, adormeceu rapidamente e fez algo que não se lembra de alguma vez ter feito: sonhou. Viu umas escadas com uma cor que não consegue descrever, uma geometria que não consegue compreender e um fim e um começo que não conseguiu ver. E na mesma imagem, uma mulher, a morrer lentamente, de olhos baços e coração lento.

No sonho, Miguel não fez nada. Ao acordar, deu um grito. O suor escorria-lhe livremente pelo corpo todo. Levantou-se, foi à casa-de-banho para se limpar, mas parou antes de atravessar a porta. À sua frente tinha umas escadas. Na realidade, umas Escadas, mas ele ainda não sabia isso.

Piscou os olhos e elas desapareceram. Da sua visão e da sua memória. Miguel entrou na casa-de-banho, lavou-se, sem se lembrar muito bem do porquê de estar naquele estado, e voltou-se a deitar. Dormiu descansado o resto da noite.

E agora, está à espera. Mas não o sabe.


quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Escadas para todo o lado



Sandra tem acordado todos os dias, desde que se lembra. Quando se tem um tumor no cérebro do tamanho de uma bola de golfe, isso é uma vitória. Fraca, constantemente enjoada e deprimida, mas acordada.

Os médicos deram-lhe algumas semanas de vida, quando a diagnosticaram, mas ela já passou os três meses desde aí. É uma lutadora, a Sandra, incapaz de aceitar que vai morrer mais cedo do que alguma vez tinha imaginado. Luta com toda as forças contra o cancro que lhe consome a vida, mas é lutar sozinha contra um exército.

Quem a conhece não pode fazer outra coisa que não vê-la a definhar. O cabelo que cai, a pele que amarela, os lábios que secam, os olhos que embaciam, a Sandra que se perde cada vez mais numa teia de dor de sofrimento e se esquece de ser quem era, a intrépida jornalista com sentido de humor.

Era Sandra Faria, agora é Sandra. Era jornalista, agora é doente. Tinha um emprego, amigos e uma vida feliz, agora tem cancro. Não era casada nem andava enrolada com ninguém, mas sempre disse que era difícil encontrar a mulher certa para essas coisas. Saía à noite para se divertir, e de vez em quando engatar uma outra rapariga jeitosa, agora sai à noite até à casa de banho, para ir vomitar.

Tudo isto, e continua a acordar todos os dias, com a mente intacta, ainda que aprisionada. Já nem sabe porque é que se recusa a morrer, mas é o que faz. A afiada gadanha pende-lhe sobre o pescoço todos os segundos de todos os dias, e Sandra, débil, quase incapaz de se mover, consegue mantê-la longe. Tão longe quanto possível.

O tumor não cresceu de um dia para o outro, mas foi de um dia para o outro que foi descoberto. Num dia uma forte dor de cabeça numa viagem com amigos, no outro um médico a dizer-lhe para se despedir da família. Sandra pediu uma segunda opinião, e uma terceira e uma quarta, e por muito que sentisse que devia continuar a pedi-las até alguma ser do seu agrado, ouvir quatro vezes "algumas semanas de vida, na melhor das hipóteses" foi o suficiente para ficar convencida.

Dedicou alguns dias a tratar dos seus assuntos, disse aos amigos mais próximos o que se passava, explicou aos médicos que tinha pouca família e que a que tinha, não lhe interessava, e começou os tratamentos.

Três meses depois, continua a acordar. Continua viva, contra todas as esperanças clínicas, e por muito que os dias lhe pareçam tão iguais e sofridos que se ache no Inferno, ou pelo menos em algum tipo de Purgatório.

"Podias ter ligado."

A voz, grave, levemente rouca, dura, só pode ser de uma pessoa.

"Pelo menos ao teu pai, Sandra."

Ela não quer saber. Não o quer ali. Mas também não tem forças para o mandar embora. Olha para ele, mortiça e baça, deixa-se embalar pelos vários apitos hospitalares que lhe enchem o quarto e fecha os olhos. Ele, Luís Faria, pai, não chega a entrar no quarto. Percebe a mensagem e vai-se embora. Só chora no carro, durante alguns segundos, e depois faz por esquecer a filha que nunca quis e que já não o quer.

"Como é que te sentes?"

A voz, grave, nada rouca, amável, pode ser de qualquer pessoa.

"Não me conheces, mas... Temos que ter uma conversa importante."

Ela não quer saber. Nem sabe se o quer ali. Mas também não tem forças para o mandar embora. Abre os olhos e vê-o, jovem, com uma cicatriz profunda a começar no canto direito dos lábios e a descer pelo pescoço abaixo até às suas costas.

"O meu nome é Miguel."

Não o conhece. Mas a nuvem que lhe tolda a mente começa a dissipar-se lentamente. Os olhos brilham uma vez mais e ela é toda ouvidos. Só não sabe é porquê.

"Tens sonhado com escadas?"

A pergunta é estranha, mas a resposta é óbvia. Quase que se lembra de uma grande casa banhada pelo Sol e com escadas de pedra. Pensa e vê um padrão, um que se repete todas as noites desde que sabe que tem uma bola de golfe a matá-la lentamente, por dentro. Escadas, um bocadinho por todo o lado e que vão dar a todo o lado. Sem saber como, nem porquê, ainda a estranhar aquele homem, mas a confiar em Miguel, Sandra responde.

"Sim."

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Escadas para sítio nenhum


Miguel subiu as escadas até à Lua, antes de acordar. A decepção de voltar ao mundo real deixou-o logo de mau humor, mas conseguiu controlá-lo, ao ver que dia era. Levantou-se de um pulo, olhou para o relógio, calculou quanto tempo tinha antes de o Sol despontar verdadeiramente, e correu para a banheira.

O duche rápido foi mais rápido do que o habitual, e com a pressa em sair do hotel ia-se esquecendo da mala. Mas a excitação era justificável: nem todos os dias se podia explorar umas Escadas.

Estruturas impossíveis, as Escadas já existiam antes da Humanidade, e limitavam-se a mudar de aspecto de forma a melhor encaixarem no ambiente que as rodeava. Só existiam em...

Aqui o manuscrito encontra-se ilegível. As páginas seguintes estão desaparecidas ou demasiado danificadas, e não só por causa da deterioração normal. Quem quer que tenha pegado nisto antes de mim, fez uma bela merda. E tanto quando eu sei, não deixou registos. Bah.

Como saber se estas Escadas eram as mesmas estruturas que andam a ser descobertas em vários pontos do planeta? A autora do livro, Sandra Faria, não podia ter um nome mais genérico, o que dificulta ainda mais as coisas. E Escadas é um mau título. Enfim.

Tenho que sair daqui e procurar noutro sítio. Talvez até investigar a estranha estrutura que foi descoberta em Lisboa, e que talvez seja uma destas Escadas...

terça-feira, 28 de julho de 2015

Labirinto de galhos


Henrique não via padrões. Conheci-o por acaso, numa fila de espera longa o suficiente para conversas. Nunca soube o apelido dele nem muito mais acerca da sua vida. Apenas isto: chamava-se Henrique e não via padrões, tinha cabelo escuro, olhos claros, uma pequena cicatriz no queixo e, de resto, estava completamente na média.

Durante a conversa, que já não me lembro de como chegou a este tema, reparei que os olhos dele, profundamente azuis, se emocionavam com cada palavra. Não chorou, nem ficou com lágrimas nos olhos, mas o olhar foi perdendo o foco, e as pálpebras foram-se semicerrando, numa tristeza silenciosa a gritar-me aos ouvidos.

O que mais o incomodava era não ser como as outras pessoas, sempre a ver padrões em todo o lado, mesmo quando eles não estavam lá. Henrique estava condenado a não ver esses mesmos padrões, nem que lá estivessem. Foi a vários médicos e todos lhe fizeram as mesmas perguntas, numa tentativa de despistar doenças conhecidas, mas as respostas nunca eram as esperadas.

Como resultado, Henrique habituou-se a receber palmadinhas nas costas e receitas de antidepressivos acompanhadas de "vá lá homem, descanse um pouco que isso passa, não se esqueça de tomar os comprimidos, adeus, adeus, as melhoras".

Mas a história que me interessou foi outra. Henrique lembrava-se de, em criança, quando ainda tinha amigos com quem brincar, dar de caras com uma árvore gigantesca no meio do mato.Ele frisou bem que todas aquelas árvores eram grandes, mas que aquela era particularmente enorme. Os seus amigos ignoraram-na, mas ele olhou para cima e sentiu uma estranha vontade de a trepar.

É que no meio dos galhos e das folhas verdes, que começavam lá bem no alto, Henrique viu um labirinto. Um ténue padrão de Natureza inconsciente que se tinha limitado a crescer como muito bem lhe apetecia e o ambiente em seu redor o ditava. Um padrão nascido da confusão aleatória dos ramos de uma árvore.

Miúdo que era, Henrique fez o óbvio. Deixou-se fascinar e trepou a árvore. Arranhou-se, cortou-se, esfolou-se, enfim, sofreu muito, e ainda antes de chegar aos primeiros ramos. Esses tornaram-se em paredes labirínticas que se desenrolaram com a sua subida, contorcidas o suficiente para Henrique ver neles um labirinto, mas não emaranhadas o suficiente para que fosse preciso ter medo.

O que ele fez, disse-me ele enquanto estávamos na fila, mais de uma vintena de anos depois dos acontecimentos, foi trepar o mais rápido possível, sem ligar aos perigos, e assim chegar ao topo da árvore. Ainda ia a tempo do pôr-do-sol, que viu, maravilhado, e após o qual desceu, refazendo o seu caminho no estranho labirinto.

Foi com a noite a fechar-se sobre ele e os seus amigos há muito fugidos para as respectivas casas, que Henrique percebeu que tudo batia certo. Da mesma forma que os cegos só vêem uma cor, preto, e os surdos só ouvem um som, silêncio, ele só via um padrão: a ausência de padrão. Henrique via o caos.

Terminou assim a história, de forma abrupta, pois chegara a sua vez de avançar para a caixa e pagar. Arrumou as compras em sacos, e disse-me, antes de se ir embora, que continuava a querer ser normal.

Nunca mais o vi.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Um ponto aleatório do ciclo

Começar é chato e acabar é difícil. Prefiro continuar. Afinal, nada se cria e nada se perde, não é verdade? Tudo se transforma. A energia, a massa, as palavras. Tudo tem que vir de algum lado, e ir para outro sítio qualquer. Para as pessoas, a origem redunda sempre na mesma: nós. Não interessa a ninguém que o conceito de uma origem suprema seja praticamente inconcebível, e que vermos o ser humano como essa origem é ridículo. Precisamos de pensar assim, de uma forma ou de outra. Egocêntricos? Sem dúvida. Mas no fundo ninguém se importa. Para isso era preciso pensar, e para quê fazê-lo quando existem tradições, hábitos e preconceitos já definidos e prontos a seguir? Acabam tão embrenhados nessas coisas, que ficam presos nos começos e se esquecem de continuar, nunca chegando aos destinos. Quais destinos? Ora, isso é apenas vagamente relevante.



Rui Bastos. Com tecnologia do Blogger.