terça-feira, 11 de agosto de 2015

Diomira - As Cidades e a Memória 1

Seeing Calvino

“…cidade com sessenta cúpulas de prata, estátuas de bronze de todos os deuses, ruas pavimentadas a estanho, um teatro de cristal e um galo de ouro que canta no alto de uma torre todas as manhãs. […] quem lá chegar numa noite de Setembro […] lhe apetece invejar os que agora pensam que já viveram uma noite igual a esta e que então foram felizes.”

Ainda a alguma distância da cidade, e graças ao brilho alaranjado do sol poente, já sabia onde ela ficava. Conseguia ver as cúpulas de prata a brilharem, à distância, e sabia a que número chegaria se as contasse: sessenta. Eram exactamente sessenta, as cúpulas que se erguiam, de Diomira, e que identificavam a cidade, muito antes de qualquer viajante lá chegar.

Diomira, a cidade que parece uma manta de retalhos. Diomira, a cidade que reúne deuses de várias regiões e religiões. Sem olhar a diferenças nem desavenças, acolheu-os a todos, em tempos, permitiu que várias culturas se instalassem, e não se opôs a que cada uma trouxesse os seus próprios deuses.

Vindas de todos os lados, essas culturas chegaram a Diomira quando ela era ainda um mero pedaço de terra, sem edifícios, sem ruas, sem cúpulas de prata a brilhar ao sol, apenas um grande descampado que atraiu aquele heterogéneo grupo de pessoas.

E foi com um silêncio feliz, feliz de chegarem ao destino que não sabiam que o era, que aceitaram a presença uns dos outros, e concordaram que ali iriam erigir Diomira, que há muito esperava por eles.

Oh!, o que eu não dava por ter visto! Por ter visto os dias, semanas, meses e anos que se seguiram, em que tantas culturas e raças se juntaram e trabalharam lado a lado. Deve ter sido um regalo para a vista, e para a alma, ver os povos habituados ao calor sufocante dos desertos arenosos do Sul a ensinarem como fazer roupa mais leve, e mais apropriada, aos povos dos desertos gelados do Norte. Ver sessenta povos, sessenta culturas, sessenta fés, reunidas num só sítio, e através dessas fés, ao mesmo tempo individualizadas e fundidas numa só, a trabalhar por um objectivo comum… Que visão! Que visão!

Mediante combinações apenas pensadas, que não precisaram de ser ditas, por parecerem demasiado óbvias aos futuros diomirenses, construíram sessenta cúpulas de prata, exactamente uma em representação de cada uma das suas culturas, e adornaram as ruas, pavimentadas de estanho, com estátuas de bronze de todos os seus deuses, e até mesmo, num acto de verdadeira boa-fé, de deuses que apenas conheciam de nome, de outros povos que ali não estavam representados.

Fizeram isto sempre alegres, e sempre confiantes uns nos outros e em si mesmos, comportamento em parte condicionado por Diomira em si, e que se iria perpetuar pelas gerações futuras. Esses primeiros habitantes de Diomira tiveram a capacidade, herdada pelos seus descendentes, de conviverem com dezenas de outras fés, sem perderem a sua. Conseguiram pensar na cidade como um todo, sem se esquecerem que são únicos. Tiveram a audácia de aceitarem e respeitarem sessenta culturas diferentes, sem se desviarem da sua própria.

Foi essa… capacidade, essa habilidade, seja o que for, que permitiu a Diomira crescer e erguer as suas sessenta cúpulas de prata, que agora brilham na minha direcção, e em todas as direcções, lançando a sua luz por todo o lado, sem no entanto sair do mesmo sítio.

Essa cidade, essa Diomira refulgente e multi-cultural, foi a primeira cidade que encontrei, desde que iniciei a minha viagem, saindo da minha própria cidade. Que sorte a minha, encontrar uma cidade que brilhe tão intensamente, ao longe, qual farol a indicar-me o caminho! Apressei as minhas pernas cansadas, desejoso de chegar a Diomira antes de o sol se pôr, para não ter que confiar apenas na minha capacidade de orientação, e me puder guiar pelo brilho da cidade.

Mas, azar o meu, os dias já tinham começado a encurtar, e o sol pôs-se, muito antes de eu chegar perto de Diomira. Resignado, lancei o olhar para cima, para o céu, para identificar as estrelas por cima de mim e continuar o meu caminho, seguro e sem medo de me perder. Procurei, pensei, lembrei, calculei, tudo isto de forma automática, virtude da prática, e encontrei a rota que me levaria à cidade.

Desviei o olhar do firmamento, lentamente, para a direcção de Diomira, e constatei, com surpresa, que não precisava de ter feito tantos cálculos.

A cidade ainda refulgia.

Refulgia, mas com um brilho diferente. Já não era o tom alaranjado, de um sol poente, era um prateado majestoso, a raiar o branco, que contrastava com o negro céu atrás e acima da cidade. E constatei também que devia ter andado mais depressa do que pensava, ou então que tinha andado enquanto calculava, sem dar por ela, pois Diomira estava a uns meros duzentos passos de mim!

Corri, ansioso, e entrei pelos portões da cidade, mesmo a tempo de ver as primeiras lâmpadas multicores a acenderem-se, por cima das lojas de peixe frito. Desencadeou-se assim um processo parecido às peças de dominó a cair: acendeu-se lâmpada atrás de lâmpada, em rua atrás de rua, criando um autêntico arco-íris das mais variadas cores, cada uma única, mas formando um belo conjunto uniforme, no todo.

Era essa a visão dos diomerenses, desde que fundaram a cidade. Não a de que uma população é formada por vários indivíduos, mas a de que vários indivíduos formam uma população. Uma diferença subtil, apenas formal, na realidade, mas que mudava tudo.

Caminhei lentamente pelas ruas de Diomira, e observei os seus habitantes a saírem das casas, a cumprimentarem-se calorosamente, a conviverem calmamente. Reparei que as diferenças entre as várias culturas se tinham esbatido. Os traços particulares de cada raça tinham sido como que erodidos pela passagem do tempo, não se conseguindo dizer onde ficavam as raízes de algum dos habitantes.

Estes não eram os primeiros diomirenses, uma amálgama heterogénea de culturas e raças, ainda que unidos. Estes eram os verdadeiros diomirenses, descendentes desses primeiros, e que tinham criado a sua própria raça, a raça de Diomira, mas que tinham mantido, apesar disso, os costumes da sua raça original.

Só soube isto porque à medida que eu caminhava pelas ruas de Diomira, pude ver como cada habitante procurava uma estátua de bronze em particular, e fazia as suas orações conforme a cultura a que devia ter pertencido, e que, afinal de contas, ainda pertencia. Vi diomirenses ajoelhados, lado a lado, de cabeça erguida e braços abertos para uma estátua, bem como diomirenses calmamente sentados, a formarem um semicírculo em redor de outra.

E vi então a mais bela construção de Diomira, um teatro de cristal, com paredes transparentes, que me permitiram olhar lá para dentro, e a quem estava lá dentro olhar cá para fora. Havia uma peça a ser representada no palco, mas havia pessoas no público viradas em todas as direcções. Tanto observavam os actores, como as pessoas que passavam, através das límpidas paredes.

Admirei aquela magnífica construção durante muito tempo, durante muito tempo mesmo, e a única coisa que me tirou daquele torpor foi um silêncio absoluto que se fez sentir na cidade. Olhei em volta, e vislumbrei vários rostos expectantes e sorridentes. Vi as estátuas de bronze, tal como já tinha visto em muitos outros sítios, e vi as cúpulas de prata, usuais nos mais variados pontos do mundo. Até mesmo aquela magnífica construção, aquele teatro de cristal tinha parentes, mais ou menos afastados, espalhados por todo o lado.

Reparei nesse momento que todas as cabeças se encontravam viradas para o mesmo lado. Virei-me eu também, e vi uma mulher a sair por uma portada para um terraço, a olhar para toda a Diomira, e a soltar um grito: uh!

Grito de guerra, ou grito de paz? Grito de festa, de certeza, pois todos os diomirenses começaram a dançar e a cabriolar por todo o lado, misturando danças de todo o lado, e inclusive arrastando-me com eles, e fazendo-me dançar, sem saber os passos, coisa que não importava, pois não haviam passos definidos. Só precisei de sentir a felicidade deles, e de dançar e cantar com eles, deixando-me ir, deixando-me fluir, deixando misturar a minha própria cultura com as dezenas de culturas dos diomirenses, que não passavam, afinal de uma única.

Dancei e cantei, convivi alegremente, comi com os diomirenses, e diverti-me como há muito não me divertia. Foi só quando os primeiros raios de sol apareceram no horizonte, que os diomirenses se acalmaram, e se mostraram cansados, tal como eu estava. Daí até pararem completamente, ainda o sol subiu alguns metros no horizonte, mas quando isso finalmente aconteceu, um som percorreu toda a cidade. O canto de um galo.

Procurei-o com o olhar, e fui dar com ele no cimo de uma torre, uma das mais altas de Diomira. Tinha penas amarelas, aliás, douradas como se fossem feitas do mais puro ouro, e cantava a bom cantar, enchendo a cidade com o seu estrépito, ecoando pelas ruas, embatendo nas cúpulas, contornando as estátuas, e entrado pelo teatro de cristal adentro.

Os diomirenses recolheram às casas, e só nessa altura me apercebi de algo. Que tinha acabado de ter a noite mais feliz de toda a minha vida, e que nunca nada se lhe assemelharia. Oh!, como eu invejei, nesse momento, todos aqueles que apenas pensavam terem tido uma noite assim, e que eram verdadeiramente felizes, pois eu tinha acabado de a ter, e enfrentava agora a dura percepção de saber que já tinha encontrado a verdadeira felicidade, mas que a ia perder, para todo o sempre.

Oh!, como eu os invejei!

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Rui Bastos. Com tecnologia do Blogger.