sábado, 8 de agosto de 2015

Escadas de memória


Miguel ainda não sabe o que são umas Escadas. Tem vivido a sua vida da forma mais tranquila possível. Normal e aborrecido, até. Gosta de desporto, mas não demasiado, gosta de mulheres, mas não demasiado, gosta de comer, mas não demasiado, enfim, uma autêntica personificação do tédio.

Aquilo que o espera, no entanto, é grande. Muito, mas muito grande. Ele que toda a sua vida subiu e desceu escadas como se nada fosse, vai ter que enfrentar umas Escadas. A primeira pessoa a fazê-lo em vários séculos.

Só que ainda não sabe. Sente que se passa qualquer coisa, já há algumas semanas, mas não compreende o quê. Pensa sempre em algum tipo de doença (Miguel é, obviamente, hipocondríaco, mas não demasiado), e nunca em mais nada. Nunca sequer pensou em nada místico: desde que se lembra que nem é religioso, nem agnóstico nem ateu nem nada; está-se nas tintas.

Mas hoje foi diferente. Hoje sentiu o que tem sentido, e ignorou como de costume. Foi-se deitar, adormeceu rapidamente e fez algo que não se lembra de alguma vez ter feito: sonhou. Viu umas escadas com uma cor que não consegue descrever, uma geometria que não consegue compreender e um fim e um começo que não conseguiu ver. E na mesma imagem, uma mulher, a morrer lentamente, de olhos baços e coração lento.

No sonho, Miguel não fez nada. Ao acordar, deu um grito. O suor escorria-lhe livremente pelo corpo todo. Levantou-se, foi à casa-de-banho para se limpar, mas parou antes de atravessar a porta. À sua frente tinha umas escadas. Na realidade, umas Escadas, mas ele ainda não sabia isso.

Piscou os olhos e elas desapareceram. Da sua visão e da sua memória. Miguel entrou na casa-de-banho, lavou-se, sem se lembrar muito bem do porquê de estar naquele estado, e voltou-se a deitar. Dormiu descansado o resto da noite.

E agora, está à espera. Mas não o sabe.


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Rui Bastos. Com tecnologia do Blogger.