quinta-feira, 30 de julho de 2015

Escadas para sítio nenhum


Miguel subiu as escadas até à Lua, antes de acordar. A decepção de voltar ao mundo real deixou-o logo de mau humor, mas conseguiu controlá-lo, ao ver que dia era. Levantou-se de um pulo, olhou para o relógio, calculou quanto tempo tinha antes de o Sol despontar verdadeiramente, e correu para a banheira.

O duche rápido foi mais rápido do que o habitual, e com a pressa em sair do hotel ia-se esquecendo da mala. Mas a excitação era justificável: nem todos os dias se podia explorar umas Escadas.

Estruturas impossíveis, as Escadas já existiam antes da Humanidade, e limitavam-se a mudar de aspecto de forma a melhor encaixarem no ambiente que as rodeava. Só existiam em...

Aqui o manuscrito encontra-se ilegível. As páginas seguintes estão desaparecidas ou demasiado danificadas, e não só por causa da deterioração normal. Quem quer que tenha pegado nisto antes de mim, fez uma bela merda. E tanto quando eu sei, não deixou registos. Bah.

Como saber se estas Escadas eram as mesmas estruturas que andam a ser descobertas em vários pontos do planeta? A autora do livro, Sandra Faria, não podia ter um nome mais genérico, o que dificulta ainda mais as coisas. E Escadas é um mau título. Enfim.

Tenho que sair daqui e procurar noutro sítio. Talvez até investigar a estranha estrutura que foi descoberta em Lisboa, e que talvez seja uma destas Escadas...

terça-feira, 28 de julho de 2015

Labirinto de galhos


Henrique não via padrões. Conheci-o por acaso, numa fila de espera longa o suficiente para conversas. Nunca soube o apelido dele nem muito mais acerca da sua vida. Apenas isto: chamava-se Henrique e não via padrões, tinha cabelo escuro, olhos claros, uma pequena cicatriz no queixo e, de resto, estava completamente na média.

Durante a conversa, que já não me lembro de como chegou a este tema, reparei que os olhos dele, profundamente azuis, se emocionavam com cada palavra. Não chorou, nem ficou com lágrimas nos olhos, mas o olhar foi perdendo o foco, e as pálpebras foram-se semicerrando, numa tristeza silenciosa a gritar-me aos ouvidos.

O que mais o incomodava era não ser como as outras pessoas, sempre a ver padrões em todo o lado, mesmo quando eles não estavam lá. Henrique estava condenado a não ver esses mesmos padrões, nem que lá estivessem. Foi a vários médicos e todos lhe fizeram as mesmas perguntas, numa tentativa de despistar doenças conhecidas, mas as respostas nunca eram as esperadas.

Como resultado, Henrique habituou-se a receber palmadinhas nas costas e receitas de antidepressivos acompanhadas de "vá lá homem, descanse um pouco que isso passa, não se esqueça de tomar os comprimidos, adeus, adeus, as melhoras".

Mas a história que me interessou foi outra. Henrique lembrava-se de, em criança, quando ainda tinha amigos com quem brincar, dar de caras com uma árvore gigantesca no meio do mato.Ele frisou bem que todas aquelas árvores eram grandes, mas que aquela era particularmente enorme. Os seus amigos ignoraram-na, mas ele olhou para cima e sentiu uma estranha vontade de a trepar.

É que no meio dos galhos e das folhas verdes, que começavam lá bem no alto, Henrique viu um labirinto. Um ténue padrão de Natureza inconsciente que se tinha limitado a crescer como muito bem lhe apetecia e o ambiente em seu redor o ditava. Um padrão nascido da confusão aleatória dos ramos de uma árvore.

Miúdo que era, Henrique fez o óbvio. Deixou-se fascinar e trepou a árvore. Arranhou-se, cortou-se, esfolou-se, enfim, sofreu muito, e ainda antes de chegar aos primeiros ramos. Esses tornaram-se em paredes labirínticas que se desenrolaram com a sua subida, contorcidas o suficiente para Henrique ver neles um labirinto, mas não emaranhadas o suficiente para que fosse preciso ter medo.

O que ele fez, disse-me ele enquanto estávamos na fila, mais de uma vintena de anos depois dos acontecimentos, foi trepar o mais rápido possível, sem ligar aos perigos, e assim chegar ao topo da árvore. Ainda ia a tempo do pôr-do-sol, que viu, maravilhado, e após o qual desceu, refazendo o seu caminho no estranho labirinto.

Foi com a noite a fechar-se sobre ele e os seus amigos há muito fugidos para as respectivas casas, que Henrique percebeu que tudo batia certo. Da mesma forma que os cegos só vêem uma cor, preto, e os surdos só ouvem um som, silêncio, ele só via um padrão: a ausência de padrão. Henrique via o caos.

Terminou assim a história, de forma abrupta, pois chegara a sua vez de avançar para a caixa e pagar. Arrumou as compras em sacos, e disse-me, antes de se ir embora, que continuava a querer ser normal.

Nunca mais o vi.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Um ponto aleatório do ciclo

Começar é chato e acabar é difícil. Prefiro continuar. Afinal, nada se cria e nada se perde, não é verdade? Tudo se transforma. A energia, a massa, as palavras. Tudo tem que vir de algum lado, e ir para outro sítio qualquer. Para as pessoas, a origem redunda sempre na mesma: nós. Não interessa a ninguém que o conceito de uma origem suprema seja praticamente inconcebível, e que vermos o ser humano como essa origem é ridículo. Precisamos de pensar assim, de uma forma ou de outra. Egocêntricos? Sem dúvida. Mas no fundo ninguém se importa. Para isso era preciso pensar, e para quê fazê-lo quando existem tradições, hábitos e preconceitos já definidos e prontos a seguir? Acabam tão embrenhados nessas coisas, que ficam presos nos começos e se esquecem de continuar, nunca chegando aos destinos. Quais destinos? Ora, isso é apenas vagamente relevante.



Rui Bastos. Com tecnologia do Blogger.