quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Isidora - As Cidades e a Memória 2

Seeing Calvino

“... cidade onde os prédios têm escadas de caracol incrustadas de búzios marinhos, onde se fabricam artísticos óculos e violinos, onde quando o forasteiro está indeciso entre duas mulheres encontra sempre uma terceira, onde as lutas de galos degeneram em brigas sangrentas entre os apostantes. [...] A vida sonhada continha-o jovem; a Isidora chega em idade tardia. [...] Os desejos são já recordações.”

Cavalguei por terrenos bravios durante demasiado tempo. Os dias que eu tinha previsto, transformaram-se lentamente em semanas, que acabaram por se tornar meses, mesmo anos. Anos esses que foram passados a olhar em redor, na esperança de encontrar qualquer traço de civilização, e vendo apenas território selvagem, sob a forma de montanhas agrestes, ou planaltos pouco convidativos.

Admito, com vergonha, é certo, que me perdi. Nunca tal me tinha acontecido, em todos os meus anos como viajante, mas quando aconteceu, foi em grande.

Durante esse tempo em que estive perdido, todos os dias olhei em todas as direcções, observando a vegetação rasteira a desaparecer e a dar lugar ao solo arenoso, que se ergueu, lentamente por vezes, outras vezes de forma abrupta, e deu lugar a montanhas agrestes. Em vão procurei o mais pequeno sinal de civilização...

Não encontrei nada durante meses. Absolutamente nada. Nem uma modesta caravana de nómadas, nem uma portentosa cidade, como Diomira, a cidade de onde parti, e cujas memórias se começavam a esbater, na minha mente. Foi então, quando já mal me lembrava do último pedaço de civilização que tinha visitado, que comecei a ansiar, mas não por comida, ou por água. Nunca tive que passar fome, nem sede. Foi por uma cidade. Ansiei por civilização, desejei encontrar uma cidade, para descansar, envolto no leve burburinho tão típico das cidades.

Cheguei, nessa altura, a Isidora, como se ela estivesse à espera que eu a desejasse, que chamasse por ela. Onde antes tinha terrenos bravios, tinha agora Isidora, cidade das Artes, tão maravilhosamente construída, e tão tempestivamente habitada.

Os seus habitantes, artistas natos, sensíveis à beleza e à magnificência como poucos o são, entregam-se facilmente à fúria e à frustração, temperamento usual entre artistas, que se têm a infeliz sorte de passar alguns dias sem conseguirem criar alguma coisa, começam a ficar irritadiços e enervados.

Pelo menos eu pensava que tinha chegado a Isidora. Tinha tido uma espécie de sensação, que mo dizia, mas não tive mesmo a certeza até entrar na cidade, e ver como todos os prédios tinham escadas em caracol, incrustadas de búzios marinhos, colocados em belos padrões, apenas possíveis de serem imaginados e desenhados pelos habitantes-artistas de Isidora, os isidorenses.

E vi, com prazer, as placas que anunciavam as duas especialidades dos isidorenses. Os seus óculos e violinos são falados em todo o mundo, cobiçados por todos os astrónomos e músicos, e a sua construção é imitada por todos os artesãos, numa vã esperança de se conseguirem comparar aos hábeis isidorenses.

Isidorenses os artistas, isidorenses os artesãos... Qual dessas facetas seria a mais natural aos habitantes de Isidora? Ou seriam ambas intrínsecas e inseparáveis uma da outra? Vou ser honesto, não sabia, e não fiquei a saber, mesmo depois de sair da cidade. Pareciam, por vezes, funcionar em conjunto, quando os habitantes usavam os seus talentos artísticos numa peça artesanal, ou quando faziam uso das suas habilidades de artesãos para finalizarem uma escultura.

Claro que perguntar aos próprios habitantes estava completamente fora de questão... Isso porque notei que os habitantes de Isidora pareciam dividir-se em dois grupos: homens e mulheres. Fazia-se esta divisão pelo simples facto de não existirem mulheres artistas em Isidora. Sempre foram todos homens. O porquê disso mesmo foi outra das questões que ficaram por responder sobre Isidora.

Os homens, durante o dia, passeavam entre os vários edifícios, visitando as oficinas de uns e de outros, trocando ideias, fazendo compras aos mercadores vindos de fora, desde cavaletes e tintas a madeiras exclusivas deste ou daquele lugar. Durante a noite, tive a infelicidade de assistir ao degradante passatempo destes homens, artistas natos, tão sensíveis à beleza, e que pareciam, no entanto, insensíveis ao sofrimento e à crueldade.

Por todo o lado, lutas de galos. As arenas proliferavam, durante a noite, como que nascidas do solo, em todas as ruas, e os homens juntavam-se à volta desses sangrentos palcos circulares, eufóricos e extasiados, alguns com galos debaixo dos braços, outros a observar as manchas castanhas de sangue seco que cobriam algumas das arenas quase na totalidade, enquanto esperavam pelo início das lutas.

A noite acabava sempre da mesma maneira, e os isidorenses sabiam-no, embora isso não os fizesse hesitar. Todas as noites, sem excepção, a luta passava da arena para as suas imediações, e não era por fuga dos galos participantes, mas sim porque os apostantes, desconfiados uns dos outros, se atacavam mutuamente, reclamando que não tinha sido tudo pago, ou que alguém tinha metido a mão no bolso de outro alguém.

Já fazia parte do espectáculo. Os homens reuniam-se ali, no início da noite, para assistirem aos galos a combaterem até à morte, mas era com a mais pura das ansiedades que esperavam pelo fim desses mesmos combates, para que pudessem descarregar tudo o que precisavam no vizinho do lado.

As brigas eram sangrentas, e capazes de durar o resto da noite, até os isidorenses se separarem, e irem cada um para sua casa, calmamente, como se nada tivesse acontecido. Regressavam, a maior parte deles, para casas vazias, ou melhor, cheias, mas de Arte. Eram poucos os homens que viviam com uma mulher, e pelo menos disso consegui perceber rapidamente o porquê.

Os isidorenses, artistas desde que nascem até que morrem, sem excepção, viviam as suas vidas de tal maneira imersos na Arte, distraídos com as suas esculturas, as suas pinturas, os seus óculos e os seus violinos, que praticamente desprezavam as mulheres, deixando-as para último lugar das suas listas de prioridades. As mulheres, claro, nunca gostaram disso, e aprenderam, com o tempo, a distanciarem-se dos homens, vivendo à parte, e apenas se encontrando com eles para se garantirem que Isidora continuava a ser habitada.

Os homens nunca deram por ela, como é óbvio. Continuaram a entregar-se de corpo e alma à sua Arte, e aos seus ofícios, e pareceram satisfeitos com o contacto mínimo com as mulheres, que, curiosamente, sempre foram em maior número que os homens. Parece uma gigante piada, com Isidora com pano de fundo: uma cidade onde os homens desprezam as mulheres, durante toda a vida, é a mesma cidade onde elas existem em tal número que se um viajante se encontrar indeciso entre duas mulheres, logo encontra uma terceira!

Não pude deixar de pensar como eram estranhos, estes isidorenses. Mas ao mesmo tempo, congratulei-os, pelo desprezo e falta de afecto dos isidorenses às mulheres da cidade, que ajudou, juntamente com tudo o resto, é claro, a criar uma cidade de sonho para os viajantes que, como eu, ansiavam por uma cidade.

Afinal, Isidora escorria cidade e civilização dos poros de todos os habitantes. Poderia haver algo mais citadino que homens imersos no seu trabalho e mulheres desprezadas? Que um caos controlado durante o dia, e uma calma descontrolada durante a noite?

Isidora era, no fundo, o meu sonho, enquanto viajante perdido, e de certo o sonho de muitos outros viajantes. Apenas com uma pequena e subtil diferença. A cidade dos meus sonhos, enquanto estava perdido, que agora sei chamar-se Isidora, era uma cidade quase perfeita, que me continha a mim, enquanto jovem. Afinal, eu era um jovem, quando comecei a sonhar com ela. Mas quando lá cheguei, vi que a verdadeira Isidora me tinha recebido já a caminhar para uma idade tardia.

Vi na praça um comprido paredão, onde os velhos se encostavam, a observar a juventude que lhes tinha fugido, e sido passada às gerações seguintes. Foi com horror que reparei nas roupas que a maior parte deles tinham vestidas. Eram em tudo parecidas com as minhas, roupas de viajante. Isidora parecia ser o pouso final dos viajantes, que se perdiam no caminho até ela, sonhavam com ela até ao ponto de chamarem por ela, nos seus desejos. Mas quando finalmente lá chegavam, não eram os jovens viajantes que tinham iniciado a viagem, mas uns velhos viajantes, prontos para ficarem por ali, a viverem através dos jovens isidorenses.

Deles olhei para mim, e vi que era esse o caminho que me preparava para seguir. Dei, na minha mente, um passo atrás, para enveredar por outro caminho e, já fisicamente, sair da cidade, pesaroso.

Não olhei para trás, por cima do ombro, por saber exactamente o que lá ficava. A minha cidade de sonho, a minha civilização ideal... Ou melhor, a cidade de sonho e civilização ideal de um jovem eu, não de mim! Sabia que tinha que partir, que os meus desejos de juventude não passavam já de meras recordações, coisas já passadas sem serem realmente vividas.

Mas sabia, ainda assim, que tinha de partir...
Rui Bastos. Com tecnologia do Blogger.